Voto compulsório ou voto facultativo: uma reflexão interessante.
Antes de abordar o tema central deste artigo, gostaria de começar contando uma breve história contextual pra vocês a qual, posteriromente, ficará bastante clara em como ela se encaixa na reflexão proposta.
Em setembro de 2014 eu havia acabado de chegar à Inglaterra para cursar meu doutorado em Sociologia com duração mínima de quatro anos. Em questão de poucas semanas após ter chegado, comecei a conhecer meus colegas de curso. Alguns deles eram completo novatos como eu, enquanto outros mais veteranos.
Pois bem, em certa ocasião, após um seminário vespertino, fui convidado por alguns desses colegas e bem como pela professora alemã que havia acabado de apresentar o seminário para irmos a um pub nas cercanias da universidade. Como os grupos neste tipo de seminário eram geralmente bem pequenos, de vez em quando se faziam isso.
Naturalmente, todos nós temos o desejo de sermos aceitos e pertencer a um grupo com algum grau mínimo de afinidade. Esse sentimento nos acompanha desde criança quando ingressamos no jardim da infância até a idade adulta quando entramos na universidade, iniciamos um novo trabalho, mudamos de cidade e por aí vai.
Muito bem, dito isso, passamos alguns momentos agradáveis no pub. Era um grupo pequeno de mais ou menos 6 pessoas, sendo que eu era o único não-europeu no meio de três ingleses, uma alemã (nossa professora), uma francesa e um espanhol.
Conversamos sobre assuntos variados até que, a certa altura, a conversa migrou para temas de cunho político, pois o Reino Unido teria eleições gerais em maio do ano seguinte.
No grupo havia um doutorando veterano inglês que estava em vias de concluir seu curso em poucos meses e que era também muito engajado politicamente. Ele costumava percorrer todas as ruas de seu bairro, bater de porta em porta pra conversar sobre política com as pessoas, fazer campanha e panfletagem pelos candidatos que ele acreditava, e tudo o mais.
No Brasil, acredito que ele seria classificado como um militante político. Porém, até onde me recordo, ele não era filiado a nenhum partido. Ele se dedicava a estas atividades por acreditar no sistema político de seu país e por defender algumas plataformas específicas como proteção ao meio ambiente, segurança pública, e geração de emprego.
Bom, conversa vai, conversa vem, e acho que meio para tentarem me incluir um pouco mais no bate-papo, ele me perguntou como era o processo político no Brasil.
Suscintamente, expliquei que não era tão diferente assim da maioria dos países europeus e que, na verdade, no meu entender, existiam apenas dois fatores de distinção. Primeiro, no Brasil existe uma enormidade de partidos políticos (o que não é tão comum assim em diversos países europeus) e, segundo, que o voto é compulsório.
Contudo, ao ouvir o termo “compulsório”, pareceu que eu havia dito uma anedota sem saber, pois este colega e os demais não contiveram o riso farto. Confesso que não esperava esta reação e a situação me causou um certo constrangimento, porque não imaginava ter dito algo tão absurdo assim. Eventualmente, se eu tivesse dito que nós não temos direito a voto eu entenderia melhor, mas não era o caso.
Este episódio me marcou e permanece vivo em minha mente até os dias atuais, embora não tenha nutrido absolutamente nenhum tipo de sentimento negativo em relação a nenhum deles. Tanto é verdade que nos encontramos ocasionalmente algumas outras vezes, até que, por conta dos estudos, nossos caminhos seguiram trajetórias distintas. Acho que eles riram, em primeiro lugar, por total desconhecimento e interesse em aprender sobre outros contextos sociais diverso dos deles e, em segundo lugar, por assumirem que a realidade deles deveria ser universal.
Pois bem, passado algum tempo, em junho de 2016, ocorreu o famoso referendo nacional onde a população britânica foi convocada para decidir se o país continuaria a fazer parte da União Europeia ou se a deixaria. Como é de amplo conhecimento, este referendo ficou conhecido como Brexit.
O resultado oficial, que chocou a todos no país e ao redor do mundo, foi de 17,4 milhões de votos favoráveis à saída da União Europeia contra 16,4 milhões de votos pela permanência.
Não vou entrar no mérito da questão se foi a melhor decisão para o país ou não porque não é o escopo deste artigo. O que quero chamar a atenção é com relação a uma consequência real do voto facultativo no resultado deste referendo.
Anteriormente à votação, todos os institutos de pesquisas sinalizavam que o “sim” à permanência na União Europeia venceria. Muito provavelmente, com margem pequena, mas venceria. No entanto, como hoje sabemos, estavam todos errados.
De acordo com diferentes estudos publicados após a ratificação do resultado, um dos principais fatores que explica a inesperada vitória do “não” à permanência na União Europeia foi devido à taxa de comparecimento às urnas dos diferentes grupos por faixa etária no país.
Bem diferente do Brasil, por exemplo, a pirâmide etária do Reino Unido não é formada por uma enorme quantidade de pessoas jovens. Pelo contrário, ela é relativamente uniforme entre 18 a 65 anos, aproximadamente (vide figura a seguir).
Diante deste cenário, diferentes estudos sinalizam que os cidadãos ingleses com idade superior a 50 anos (majoritariamente conservadores, contrários à União Europeia e sobretudo avessos a imigrantes) compareceram maciçamente, atingindo taxas da ordem de 74% a 90%.
Em contrapartida, a taxa de comparecimento entre a população mais jovem não superou 66%. Naturalmente, que ainda é uma taxa de comparecimento bastante expressiva, já que o voto é facultativo. Contudo, como o perfil demográfico do país, é relativamente uniforme, conforme visto no diagrama acima, o comparecimento em massa dos eleitores mais maduros realmente fez a diferença.
Além disso, por acreditarem fortemente que o “sim” venceria, uma parcela expressiva da população jovem não compareceu à votação. Eles meio que, por assim dizer, “terceirizaram” a responsabilidade e acreditaram que “alguém” iria “votar por eles” e “como eles”.
Só que isso não existe, e os cidadãos mais maduros tinham total clareza a este respeito. Tanto é verdade que compareceram em massa e fizeram valer sua visão de país independente da União Europeia.
É verdade que o resultado desagradou muita gente tanto na Inglaterra quanto fora dela, mas entendo que ninguém podia dizer que o processo de votação não havia sido democrático e legítimo.
E agora, resgatando o episódio envolvendo meu colega que havia gargalhado ao saber que votação no Brasil é compulsória, me questiono se o resultado do referendo deles teria sido o mesmo caso o comparecimento não fosse facultativo.
Naturalmente que é uma pergunta meramente retórica, pois nunca saberemos a resposta. Mas a reflexão que eu realmente quero despertar é que ambos sistemas (compulsório & facultativo) têm vantagens e desvantagens. Tanto é verdade que, ao contrário do que pensam (ou penavam) meus risonhos colegas europeus, o Brasil não é o único país do mundo a adotar esta postura de voto compulsório.
Um levantamento conduzido pelo Parlamento da Austrália, sinaliza outras 22 nações além do Brasil, entre as quais incluem, por exemplo: Argentina, a própria Austrália, Bélgica, Chile, Cingapura, Grécia, Luxemburgo e Uruguai, onde o voto é igualmente compulsório.
Porém, na mente do meu colega, o voto facultativo representa o suprassumo da modernidade e democracia avançada, enquanto o voto facultativo simboliza atraso.
No entanto, o que meu colega inglês não conseguia perceber é que, independentemente se a votação é compulsória ou facultativa, isso não é o mais relevante para o resultado de qualquer eleição.
O que tem maior peso é o nível de engajamento coletivo e efetivo comparecimento às urnas. Se o cidadão realmente deseja ter sua visão respeitada e levada em consideração, é preciso comparecer no dia e fazer valer seu direito. Simples assim.
Conforme anteriormente explicado, os cidadãos britânicos acima de 50 anos souberam fazer esta leitura e, coletivamente, mudaram o curso da história de seu país. Em contrapartida, os mais jovens “terceirizaram” a responsabilidade, acreditando que “outros” decidiriam por eles, e depois foram às ruas protestar contra o resultado. O problema é que, àquela altura, já era tarde demais para demonstrarem seu descontentamento porque, na prática, o resultado não mudaria.
Neste contexto, meu colega inglês se divertiu bastante naquela tarde no pub, porém, como europeísta, muito provavelmente também foi às ruas protestar contra o resultado de sua “moderna” votação facultativa.
Portanto, não sei dizer se e quando votação no Brasil será facultativa como em diversos outros países. Contudo, repito, a reflexão que considero mais relevante é que o fator preponderante em qualquer eleição é a efetiva participação da sociedade civil.
Ou seja, pode até ser que para alguns, o voto facultativo simbolize modernidade e democracia avançada e o voto compulsório o oposto destes atributos. Mas, se os cidadãos se abstêm de expressarem seu direito democrático, terceirizando a responsabilidade a outrem, não importa se o voto é compulsório ou facultativo. Isso porque eles não têm garantia alguma de que o resultado irá espelhar suas expectativas.
Na verdade, ao não comparecerem, a eleição se torna uma grande loteria para estes cidadãos não participativos. Por um lado, o resultado pode vir a agradá-los e gerar uma sensação de alívio do tipo “puxa vida, que bom que as pessoas votaram certo”. Por outro lado, em caso de resultado adverso, estes cidadãos podem se sentir frustrados e compelidos a protestarem e contestarem o resultado. Só que aí, será tarde demais.
Naturalmente que o resultado de qualquer eleição (até mesmo em reunião de condomínio) jamais vai agradar a todos. Isso é normal e parte da democracia. Mas se o cidadão não fizer valer seu direito de expressar seu ponto de vista através do voto, com que legitimidade ele pode contestar o resultado, seja ele qual for?
Por isso acredito que, embora meus colegas europeus tenham se divertido bastante ao saber que o voto no Brasil é compulsório, lhe faltaram duas coisas muito importantes. Em primeiro lugar, conhecimento, já que até mesmo países vizinhos a eles como Bélgica e Luxemburgo também organizam eleições compulsórias. Em segundo lugar, e ainda mais relevante, é que o tema é bem mais amplo do que apenas ter a liberdade de escolha de comparecer à votação ou não.
Ou seja, se o eleitor prefere o candidato “A” ao invés do candidato “B”, “C” ou “D”, cabe a ele comparecer no dia da eleição (independentemente se o comparecimento seja compulsório ou facultativo) e expressar seu ponto de vista. Pode ser que seja o ponto de vista majoritário ou não. Isso, somente as urnas irão revelar. Por outro lado, se ao invés de participar o eleitor decidir “terceirizar” seu direito, como aconteceu com parcela expressiva do eleitorado jovem inglês, corre-se o risco de ficar à mercê da vontade alheia.