De onde você vem? Percepção e realidade de pertencimentos sociais
O ponto de partida para este artigo consiste no capítulo 5 de Memórias da Plantação de Grada Kilomba. Nele, a autora examina as experiências de racismo cotidiano vivenciadas por uma de suas entrevistadas, Alicia (uma mulher afro-alemã), que é frequentemente questionada de onde ela vem.
Contudo, ao responder ser dali mesmo, afinal de contas ela é nascida na Alemanha, sua resposta é invariavelmente encarada com um misto de surpresa e incredulidade. Como assim, alemã? Você está falando sério ou está brincando? Você compreendeu a minha pergunta? Estas são algumas das perguntas adicionais que lhe são feitas imediatamente após dizer ser alemã.
O que está por trás dos questionamentos tanto de sua “origem” quanto da surpresa e incredulidade diante de sua resposta? A pseudo incompatibilidade entre negritude e a branquitude alemã. Ou seja, o que está embutido em tais questionamentos é uma noção preconceituosa e muito restritiva de pertencimento “legítimo” em um espaço social e territorial fortemente associado à branquitude.
Seguindo esta linha de raciocínio, é bastante comum observar como narradores de jogos de futebol costumam “educar” ou “informar” sua audiência e antecipar a resposta para o mesmo tipo de questionamento enfrentado pela Alicia. Eles explicam “didaticamente” qual a origem de jogadores negros na seleção alemã, como que dizendo: sei que vocês podem estranhar, então, antes que se perguntem, vamos explicar.
Basta verificar, por exemplo, que jogadores como Jérôme Boateng, mesmo tendo nascido em Berlim, foi apresentado ou descrito por narradores brasileiros durante os jogos da Copa do Mundo de 2014 como sendo de “origem” ganesa. Ao apresentá-lo desta forma, é como se a audiência respirasse aliviada por alguns instantes e expressasse: “Ah. Agora entendi por que ele está ali”. Embora, este tipo de entendimento não necessariamente signifique aceitação plena.
Neste sentido, basta um revés esportivo para que a crença no não-pertencimento aflore, seja evidenciada e verbalizada de forma agressiva. Um exemplo emblemático que ilustra muito bem esta reflexão consiste na derrota da Inglaterra para a Itália na final da Eurocopa de 2020 (porém, disputada em 2021 por conta da pandemia). A revolta e inconformidade dos torcedores com o resultado adverso recaiu unicamente sobre três jovens jogadores negros que perderam cobranças de pênaltis.
Em tais circunstâncias, emergem manifestações raivosas e agressivas exigindo que eles (leia-se jogadores negros) “voltem para o lugar de onde vieram”. Mas, como assim voltar se sou daqui mesmo, devem ter se perguntado os jovens jogadores.
O que acontece é que os torcedores estão transmitindo a mensagem de que estes jogadores negros não pertencem àquele espaço social e territorial. Eles não teriam raízes lá e, por consequência, não são “como nós”. Eles são diferentes. “Nós” (leia-se pessoas brancas) somos a norma, o padrão, enquanto que “eles” (os negros) são o desvio, o elemento discrepante.
Agora saindo um pouco do campo futebolístico, trago um outro exemplo ilustrativo, mas que transmite a mesma linha de raciocínio. Entre as candidatas finalistas na edição de 2021 do concurso Miss Itália, havia uma jovem com um tom de pele um pouco mais escuro e cabelos encaracolados. Isso foi suficiente para que ela se tornasse objeto de uma série de questionamentos nas redes sociais no tocante ao seu pertencimento e “legitimidade” de, potencialmente, vir a representar a Itália em um concurso internacional de beleza.
Um de tais questionamentos dizia: “mesmo que você tenha um sobrenome italiano, você não é italiana, mas sim uma mestiça”. Contudo, na realidade, a jovem é sim italiana nata. Porém, a simples percepção de que ela fosse de “origem” estrangeira foi suficiente para despertar o alerta de não-pertencimento e ilegitimidade em termos de representação social da identidade [branca] do país.
Vejamos agora um outro exemplo clamoroso que ilustra muito bem esta postura de questionamento do pertencimento “legítimo” de pessoas negras em espaços sociais associados com branquitude e privilégio.
Em recente evento ocorrido no final de novembro de 2022 no Palácio de Buckingham em Londres, uma das convidadas, a senhora negra Ngozi Fulani (fundadora da ONG Sistah Space, que se dedica a combater abuso doméstico), foi insistentemente questionada (na verdade, praticamente interrogada) por uma senhora branca, Lady Susan Hussey, que queria a todo custo saber “de onde ela vem”.
De acordo com o relato da senhora Ngozi Fulani em entrevista para a BBC, o diálogo transcorreu da seguinte forma:
Lady Susan Hussey: de onde você é?
Ngozi Fulani: Sistah Space.
Lady Susan Hussey: Não, de onde você vem?
Ngozi Fulani: Estamos baseados no bairro de Hackney, em Londres.
Lady Susan Hussey: Não, de que parte da África você é?
Ngozi Fulani: Eu não sei, não deixaram nenhum registro.
Lady Susan Hussey: Bem, você deve saber de onde você é. Eu passei um tempo na França. De onde você é?
Ngozi Fulani: Aqui, Reino Unido.
Lady Susan Hussey: Não, mas de que nacionalidade você é?
Ngozi Fulani: Nasci aqui e sou britânica.
Lady Susan Hussey: Não, mas de onde você realmente vem, de onde vem o seu povo?
Ngozi Fulani: Meu povo senhora? O que é isso?
Lady Susan Hussey: Oh, eu posso ver que vou ter um desafio para fazer você dizer de onde você é. Quando você veio aqui da primeira vez?
Ngozi Fulani: Senhora, eu sou uma cidadã britânica, meus pais vieram para cá nos anos 1950, quando…
Lady Susan Hussey: Ah, eu sabia que chegaríamos lá no final. Você é caribenha.
Ngozi Fulani: Não, senhora. Sou descendente de africanos, caribenhos e de nacionalidade britânica.
Lady Susan Hussey: Ah, então você é de…
Ou seja, esta senhora branca não se deu por satisfeita até que conseguisse arrancar “a verdade” de sua interlocutora de tal forma a confirmar sua tese pré-concebida de que a senhora Ngozi Fulani não era “uma de nós” e possui uma “origem” diferente do padrão hegemônico a que ela está habituada.
Assim, tanto no exemplo da jovem italiana, da senhora negra britânica, quanto dos jogadores negros alemães, ingleses e de outras nações (poderíamos incluir a França de Kylian Mbappé neste contexto), se observa um claro contraste entre percepção e realidade.
A percepção de pessoas preconceituosas é alimentada por ideologias racistas de supremacia branca que aceitam e admitem unicamente pessoas brancas como representantes “normais” e hegemônicos em grande parte dos espaços sociais (sobretudo aqueles fortemente associados com privilégio e prestígio). Além disso, os não-brancos são tolerados desde que não “ousem” ultrapassar certas linhas limítrofes e estejam prestando um serviço útil.
Neste sentido, logo após a mencionada derrota da Inglaterra para a Itália, circulou nas redes sociais um post que dizia: “quando eles marcam gols, eles são ingleses. Quando eles perdem, são todos pretos”. Isto é, enquanto os jogadores negros cumprem um papel útil e necessário de marcar muitos gols para seus times, eles são celebrados. Contudo, ao cometerem a menor falha ou deslize, sua condição de não-pertencimento e não-branco é ressaltada agressivamente.
Em contrapartida, a realidade multiétnica tanto no Brasil e bem como em diversos países europeus como, por exemplo, a Alemanha, França, Inglaterra e Itália mencionadas neste artigo (mas também outras), está posta e já não é de hoje. E ela se contrapõe, desafia e resiste à discriminação e preconceitos enraizados.
A crescente tendência de ascensão social de pessoas negras no Brasil e a ocupação de espaços sociais além da margem e mais em direção ao centro provocam movimentos de “placas tectônicas” há muito convenientemente calcificadas em seu lugar.
Sendo assim, em resposta à pergunta de onde você vem, creio que uma resposta adequada seria dizer que não venho de lugar algum, sou daqui, sou de lá e não estou só de passagem. Finco minha bandeira onde quer que eu esteja e deixo minha marca indelével neste mundo que também me pertence e que eu pertenço.