A insustentável negação e silenciamento em torno da existência do racismo

Luiz Valério P. Trindade
4 min readMay 25, 2023
© Pexels, Mathias Reding

Acredito que muitos de vocês já leram e/ou foram expostos a uma enormidade de artigos, comentários, posts de redes sociais, e matérias jornalísticas abordando as deploráveis (e reincidentes) manifestações de racismo contra o Vinícius Júnior (jogador do Real Madrid), ocorridos no domingo 21 de maio em partida contra o Valência. Porém, neste artigo, quero abordar o tema sob um ângulo crítico diferente.

Em primeiro lugar, é possível observar que lamentavelmente, episódios de racismo explícito contra jogadores negros no futebol europeu tem se avolumado ao longo dos últimos anos. Para ficar somente em alguns poucos exemplos ilustrativos, pode-se citar os seguintes casos:

a) Em abril de 2014, em partida pelo campeonato Espanhol, torcedores do Villareal jogaram bananas no gramado contra o jogador Daniel Alves (que na época, era atleta do Barcelona);

b) Por inúmeras vezes, o jogador italiano Mario Balotelli foi alvo de ofensas e manifestações de cunho racistas por parte de torcedores em estádios na Itália como, por exemplo, em janeiro de 2020 em partida do Brescia (o time que ele defendia na época) contra a Lazio;

c) Em partida válida pela Copa da Alemanha em fevereiro de 2020, o jogador do Hertha Berlin, Jordan Torunarigha, sofreu ataques racistas proferidos por torcedores do Schalke 04;

d) Na Inglaterra, após a perda do título da Eurocopa 2020 para a seleção da Itália em cobranças de pênaltis, jovens jogadores negros ingleses foram duramente ofendidos nas redes sociais por terem perdido suas cobranças, conforme abordado em meu artigo de setembro de 2021 intitulado Racismo, Futebol e Redes Sociais;

e) Finalmente, na França, até mesmo o celebrado atacante Kylian Mbappé, ao lado de seu companheiro de seleção Kingsley Coman, foram alvos de agressivos ataques racistas nas redes sociais após a perda do título da Copa do Mundo da FIFA em 2022 em cobranças de pênaltis contra a Argentina.

Enfim, como já mencionado, infelizmente, os exemplos são inúmeros e poderia continuar listando muitos outros aqui, mas penso ser desnecessário, pois creio que o quadro já ficou bem claro.

Em segundo lugar, como se não bastasse o comportamento bizarro de parte considerável da torcida do Valência contra o Vinícius Júnior, o que realmente me chamou mais atenção foi a absurda e insustentável tentativa de naturalização e aceitação do ocorrido por parte da imprensa madrilena e do diretor da entidade que organiza o campeonato espanhol, sendo que este último chegou ao ponto surreal de culpar a vítima.

Durante a entrevista coletiva pós-partida, enquanto o técnico do Real Madrid, Carlo Ancelotti, se recusava a falar sobre futebol, alegando que havia acontecido algo muito mais importante do que a partida, a jornalista insistia que queria falar unicamente sobre futebol.

Este tipo de atitude e postura presta um enorme desserviço ao combate ao racismo e tem, na verdade, o efeito de naturalizá-lo e reduzir sua relevância. Afinal de contas, se o tema não é debatido abertamente, é como se ele não existisse. Pior ainda, se desqualifica o sofrimento e a dor das vítimas, e suas reclamações e protestos são ignorados, deslegitimados e silenciados.

É importante salientar também que os ataques verbais foram direcionados a um indivíduo específico (neste caso, o jogador Vinícius Júnior), porém, a dor é compartilhada com a coletividade negra brasileira e internacional. Isso porque o racismo explícito manifestado por parte dos torcedores do Valência espelha sua percepção discriminatória e preconceituosa não só em relação ao jogador, mas sobre todas as pessoas negras independentemente de seu lugar de origem ou gênero.

Uma chaga social tão grave quanto o racismo, que demonstra claramente ainda estar profundamente enraizada no imaginário coletivo, seja na Espanha quanto em diversos outros países, precisa ser discutida abertamente e combatida com muitas medidas educativas, de esclarecimento, conscientização, e até mesmo de sanções legais, e não com o silenciamento e a desqualificação do tema.

Resistir é preciso e calar-se não é uma opção diante de situações do gênero, sejam elas envolvendo uma celebridade negra ou um(a) cidadão(ã) comum. O racismo, além de ser uma atitude criminalizada em muitos países, é uma prática aviltante, ultrapassada, completamente fora de lugar, e revela muito mais sobre a limitada e míope visão de mundo dos agressores do que a condição de inferioridade que querem e insistem em atribuir às vítimas.

Como dito durante uma entrevista concedida pela premiada escritora Afro-Americana Toni Morrison (vencedora do Prêmio Pulitzer em 1987 e do Nobel de Literatura em 1993):

“Se você só pode ser alto porque alguém está de joelhos, então você tem um problema sério. E meu sentimento é que os brancos têm um problema muito, muito sério e deveriam começar a pensar no que podem fazer a respeito”.

Por fim, o que se observa é que a ascensão social de pessoas negras e a sua crescente ocupação de espaços sociais de visibilidade, prestígio e historicamente consideradas de privilégio exclusivamente brancos e sobretudo masculinos, causam uma dor e um incômodo tão profundo em pessoas preconceituosas, que o único recurso que lhes veem à mente é de proferirem insultos de cunho racistas. Eles(as) se sentem ameaçados(as) e partem para o ataque, porém, sem se darem conta de que o mundo ao seu redor já mudou há muito tempo. E as tentativas de silenciamento de vozes negras de resistência e, sobretudo, a negação da existência do racismo se tornaram sim insustentáveis e injustificáveis.

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Luiz Valério P. Trindade
Luiz Valério P. Trindade

Written by Luiz Valério P. Trindade

PhD in Sociology (University Southampton) and published author. Website: https://luizvaleriophd.weebly.com/

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