A “cor” do conhecimento na mídia brasileira
Em interessante artigo de autoria da advogada Alessandra Naviskas, intitulado Imagem da Realidade, publicado na revista Veja em 4 de outubro de 1995, ela ressalta um aspecto muito peculiar na mídia nacional. Segundo seu ponto de vista, “na televisão e na propaganda o Brasil é a Escandinávia: um país louro, de olhos azuis”.
Em outro trecho de seu artigo, a autora argumenta também que “existe entre nós um preconceito mal disfarçado que dificulta a ascensão do negro. Esse preconceito se alimenta dele mesmo, num círculo vicioso em que o negro não aparece na televisão porque não é considerado consumidor, e não é consumidor porque tem dificuldades para ascender socialmente”.
Contudo, evoluindo desta reflexão, avalio que mesmo superando os incontáveis obstáculos que se antepõem à ascensão social, ainda assim grande parte dos(as) negros(as) brasileiros(as) permanece invisível, alijado(a) de espaços de poder e decisão, e marginalizados(as) (socialmente, geograficamente e economicamente).
Neste contexto, chama atenção, por exemplo, a ausência de diversidade étnica em programas jornalísticos na TV aberta, conforme revelado em estudo publicado em 2011 evidenciando que, na ocasião, apenas 6,15% dos(as) âncoras e apresentadores(as) de telejornais em canais abertos eram negros(as).
Neste instante, alguém pode dizer: mas isso foi em 2011 e hoje em dia as coisas estão bem diferentes. Porém, lamento em despontá-lo(a), mas não é bem assim, e a dissertação de mestrado Jornalistas negras e racismo no jornalismo esportivo televisivo, defendida em 2021 na Escola de Comunicação e Jornalismo da UFRJ, confirma que o quadro não mudou pra melhor.
De acordo com a autora da dissertação, Amanda Cardoso dos Santos, não só a participação de profissionais negros(as) continua proporcionalmente muito baixa, mas o racismo historicamente posiciona as mulheres negras em situação de grande desvantagem em relação às mulheres brancas e, além disso, a intersecção de opressões como raça e gênero reduz as oportunidades de trabalho para jornalistas negras. Reflexão esta que dialoga diretamente com Carla Akotirene em seu livro essencial Interseccionalidade.
Sendo assim, a exposição deste panorama introdutório nos conduz a observar com lentes bastante apuradas um outro aspecto correlato e muito revelador do racismo multifacetado do Brasil.
Desde as últimas eleições presidenciais de 2018 em diante, é possível verificar que surgiu uma enormidade de canais no YouTube especializados em análises políticas. A lista é enorme e aqui independe de que corrente político-ideológica eles defendem ou não.
Além das dezenas de canais independentes, diversos grupos de mídia tradicionais também estabeleceram presença nas redes sociais (sobretudo no YouTube) com programação especialmente formatada para tais plataformas. É verdade também que, por conta da pandemia, muitos destes grupos de mídia se viram compelidos a migrar para o ambiente online em função da total impossibilidade de conduzirem seus programas diretamente de seus estúdios.
Agora, pare pra observar o perfil dos jornalistas e principalmente dos diversos analistas que são convidados para participar de entrevistas, debates e tecer comentários especializados. Na maioria das vezes, são predominantemente homens e brancos.
Aí trago o seguinte questionamento provocativo: será que não existem analistas negros(as) tão competentes, experientes e com formação tão sólida quanto os que são rotineiramente convidados(as) a opinar em tais programas? Advogados(as), economistas, historiadores(as), médicos(as), infectologistas, antropólogos(as), filósofos(as), sociólogos(as), professores(as) universitários(as), promotores(as) de justiça, diplomatas, entre tantas outras formações.
Naturalmente que a resposta é positiva. Existem sim e muitos(as). E digo mais, inclusive fora do tradicional eixo Rio-São Paulo (considerado o “berço natural” do conhecimento para a elite brasileira). No entanto, o que este quadro revela é a naturalização (consciente ou inconsciente) de que o saber e conhecimento no Brasil tem gênero e cor muito bem definidos.
O homem branco é considerado como fonte única, universal, legítima, confiável e incontestável de conhecimento científico “sério”, enquanto temas considerados “marginais” e de menor prestígio (por exemplo, pautas culturais, entretenimento e esportes), abre-se espaço para pessoas negras.
Muito provavelmente, na mente dos proprietários e comandantes de grupos de mídia (seja na TV aberta, TV a cabo ou até mesmo nas dezenas de canais do YouTube), conceder voz a pessoas negras para falar sobre política nacional, economia, negócios, geopolítica, sistema jurídico, etc., causaria estranheza ao destoar do padrão hegemônico.
No entanto, esta representação social altamente desproporcional de profissionais masculinos e brancos na mídia nacional destoa flagrantemente da composição étnica da população brasileira. Inclusive, não por acaso, Alessandra Naviskas, citada no início deste artigo, dizia que a televisão brasileira retrata o país como se fosse a Escandinávia.
Aliás, não só isso, esta desproporção ignora completamente outras fontes de saber e conhecimento, lhes nega legitimidade e as limita a se manifestarem somente sobre temas (ou em datas específicas no calendário) que, sob a ótica hegemônica, tem maior “aderência” com as experiências de vida da negritude.
Ademais, a perpetuação desta dinâmica afeta o processo de construção de identidade étnica e autoestima das pessoas negras (sobretudo da população jovem) ao não se verem representadas nos meios de comunicação e desprovidas de referenciais positivos em espaços de construção de saber, de debates intelectuais e de conhecimento científico, social, político, jurídico e econômico ditos “sérios”.
Portanto, é muito revelador constatar como o profundamente arraigado racismo à brasileira é capaz de se manifestar não somente de forma explícita e agressiva como observado nas redes sociais. Mas também de forma muito velada e sutil como se verifica nos meios de comunicação tanto tradicionais quanto das novas mídias e provocando o silenciamento, apagamento e deslegitimação de vozes negras.
Assim, como dito por Grada Kilomba em seu célebre livro Memórias da Plantação, “quando eles falam é científico, mas quando nós falamos não. Eles têm fatos, nós opiniões. Eles têm conhecimento, nós experiências”.
Por fim, em complemento a esta ideia poderosa, Cida Bento também nos brinda com a reflexão de que o pacto da branquitude estrutura uma lógica que atravessa gerações e impede qualquer alteração substancial na hierarquia de poder, de relações sociais e de ‘construção de conhecimento’. Este pacto implícito, complementa a autora, faz com que aqueles que estão em posições de privilégio e com voz ativa, ali permaneçam até que seus iguais estejam aptos a substituí-los e retroalimentar este ciclo de forma contínua.